André Mifano tem um galo na testa. Dos grandes. Ele é fruto de um desses corriqueiros acidentes que a gente sofre em casa quase sem perceber, de tanta intimidade que tem com o lugar.
No caso dele, entenda-se como casa, o restaurante Lilu, em São Paulo, onde fez barulho quando começou-se a falar em comida para compartilhar. “A culpa é do pia (o nome dado para o sujeito que lava a louça nos restaurantes)!”, brinca. E explica: “Eu gosto de chegar na cozinha antes de todo mundo. Faço a mis en place, as minhas coisas, defumo peixe... Já decorei onde está tudo, então eu não olho muito. Aí, fui virar, a luz estava apagada, e como havia algo fora do lugar... pau!”
Quando o Lilu inaugurara, André só saia de lá quando tinha algo inadiável para fazer em outro lugar, como as gravações do The Taste Brasil, reality show culinário exibido no GNT. “O programa é muito legal, mas pensava: ‘Pô, preferia estar em casa. Quer dizer... No restaurante’”, diz e faz uma breve pausa. “É, mas aqui é a minha casa!”
André Mifano foi um dos pioneiros no conceito de grandes chefs fazendo pratos mais simples, acessíveis e para compartilhar
André Mifano não se aguentava ao ser um dos primeiros chefs a instaurar o conceito no qual grandes chefs se aproximam dos comensais com uma gastronomia mais simples e mais acessível. André é um cara inquieto, é aquele tipo de gente que tem sempre uma novidade para apresentar. “Eu percebi que nos últimos, fiquei tão de saco cheio de ir em restaurante que só ia nos mesmos. E eram os dos meus amigos, onde eu podia ficar à vontade.” Pedia as entradas e os pratos principais ao mesmo tempo, colocava tudo no meio da mesa e ficava conversando e beliscando, com o mesmo garfo. Aí, pensou: como transformar isso num restaurante?
A ideia, como ele gosta de dizer, caiu como uma bigorna sobre a sua cabeça. “Não tenho esse negócio de processo criativo. Os insights vêm e eu que me vire para lidar com eles.” E com o desafio de todo chef ou dono de restaurante: ser relevante, manter a casa cheia e desatar os nós de um negócio de alto risco. O movimento de simplificação, não sejamos românticos, também passa por aqui.
André é um cara pragmático, com grande capacidade de racionalizar e organizar as coisas. Ele faz isso com as próprias ideias, o tempo todo
Quando André Mifano saiu do Vito, o restaurante onde fazia uma alta cozinha genuinamente italiana e autoral, estava tão desgostoso com o cenário geral que, revela, não queria mais ser dono de nada, de ser chef de coisa nenhuma. “Queria ir fazer cachorro quente, numa casinha dos outros – não minha. Ir embora, morar no Canadá...” Foi desaconselhado por um grande amigo, nome que não revela no primeiro momento. Mas em seguida: Alex Atala. “Graças a Deus eu tenho amigos mais velhos, mais inteligentes e mais experientes do que eu na cozinha. E ouvi: ‘Sai de dentro da cozinha onde você morou nos últimos anos, vai ver o mundo. Não é hora de tomar decisões’”.
A volta ao mundo não rolou. Mas a conversa ajudou a colocar a cabeça no lugar. André é um cara pragmático, com grande capacidade de racionalizar e organizar as coisas. Ele faz isso com as próprias ideias, o tempo todo, em uma hora de conversa. “Eu sou disciplinado e crio protocolos que têm de ser seguidos. Mas eles parecem uma bagunça se comparado a padrões tradicionais.”
A declaração talvez explique por que esse neto de imigrantes judeus do Egito que odeia estudar tenha largado a escola aos 17 anos para ser pia no restaurante de Hamilton Mellão. Depois, conseguiu fazer um ano no Cordon Bleu, em Londres, onde ia para uma das maiores escolas de gastronomia do mundo pela manhã e trabalhava num restaurante de fish and chips à noite. “Eu queira ter uma história romântica para te contar, mas não tenho. Eu comecei a cozinhar por que eu precisava trabalhar.”
O chef junta elementos com uma coerência impressionante: o magret de pato com feijão branco e bottarga é um exemplo disso
Durante a carreira, ele passou pela fase de usar apenas ingredientes italianos, por outra de criar intermináveis menu degustação. Com o Lilu, estava no momento de simplificar. “Quero fazer pratos com no máximo três ingredientes. Se o cara não consegue fazer uma pessoa gostar de uma comida com três ingredientes, esquece.” E completa: “O Alex usa uma frase foda: ‘Você sabe por que o diabo é conhecido? Não é por que ele mau. É por que ele é velho.’ Eu também estou ficando velho. Parece que agora eu vou entendendo as coisas.”
Fato é que a maneira como o André junta três ou mais elementos é de uma coerência impressionante. A receita de magret de pato com feijão branco e bottarga é um exemplo disso. De onde veio a inspiração? Diz que a sua cabeça funciona como um computador. Ela vai juntando tudo o que vê, lê livros de receita como se fossem romances e as coisas se alinham naturalmente.
Arroz de domingo, com rabada, linguiça e couve; parati grelhado com tomate e avocado
A primeira vez que a gente viu essa ideia de comida para compartilhar foi com o Alex Atala, no Dalva e Dito, quase dez anos atrás. Ninguém entendeu nada. Imprensa especializada inclusive. Atala estava à frente. “A ideia do Alex, quando ele criou o Dalva, era trazer de volta a forma como se comia em restaurante na década de 1950. Aquilo não é compartilhar, é dividir...
É diferente, sacou?”, adverte André. “Ele estava falando: ‘Come aqui na sua casa, com sua família. Está aqui o pernilzão, vamos dividir.’ O que eu proponho é que você venha comer na minha casa, não na sua.”
Não importa o modelo de como cozinhar ou como servir, o que define o chef André Mifano, afinal, é a figura de um cara obstinado de quem podemos esperar o inesperado a qualquer tempo. Seja onde estiver, de onde vier. Mais ou menos como a trilha sonora que tem na sua playlist: de Frank Sinatra a LCD Sound System.